Dando vida a personagens de 1700 anos
- A. Martins
- 12 de jun. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 23 de mai. de 2022
Não, Berenice não é uma vampira com a qual você corre o risco de cruzar desprevenidamente, numa noite escura, embriagado, depois de sair involuntariamente de seu bar favorito porque são quatro da manhã e ele fechou. Isso estaria mais para uma história do Stephen King dos anos 80. Minhas personagens são pessoas que viveram no início da Antiguidade Tardia, apenas uns séculos antes do início da Idade Média. Elas viveram há mil e setecentos anos.
Mas como dar vida a pessoas tão antigas?
Quando se fala em Império Romano, provavelmente a imagem que vem à mente de muitos de nós é a de senadores velhinhos, vestidos de togas brancas, confabulando secretamente nos corredores da Curia Iulia contra Júlio César ou outro Imperador da vez. Fora do prédio, uma massa de miseráveis protesta a plenos pulmões, até que o Imperador lança pedaços de pão e anuncia que haverá um espetáculo no Amphitheatrum Flavium (aka Coliseum), fazendo com que a multidão se acalme num passe de mágica.
Talvez até os imaginemos falando inglês ou, se houver um esforço de acurácia, todos “falandum cum palavrus quid terminum cum ‘um’”.
O problema desse imaginário é que ele permite trocar de cenário várias vezes. A Curia Iulia se transforma no Palácio St. James de Henrique VIII, ou no Palácio de Versalhes de Luís XVI, mas também na Casa Branca ou Palácio do Planalto contemporâneos. Tudo muito igual, e nossa identificação acaba se diluindo na mensagem de que “a história se repete”.
Durante o processo de escrita de Berenice da Capadócia, eu realmente desejava dar vida aos personagens, eliminando qualquer aspecto caricato com o qual estejamos acostumados a pensar “as pessoas do passado”.
Um ensinamento importante que eu tive durante a Faculdade de História é que o homem da Idade Média não se identificava assim. Ninguém nesse longo período pensava “Oh, eu vivo na Idade das Trevas, como é difícil!” . E nem vou tratar aqui no mérito da questão Idade Média = obscurantismo. Esse não é um blog sobre História. Dito assim pode parecer óbvio, mas na cultura geral os povos do passado são como um espectro, uma imagem opaca de vidas que se foram há muito. E, portanto, não há nada mais errôneo que isso!
Quem tem interesse nas Ciências Humanas — História, Filosofia, Sociologia, Antropologia, etc. — está acostumado a pensar no ser humano como um todo. Uma espécie que se construiu no tempo, que continua esse processo nos dias de hoje e enquanto existir. Assim, enquanto espécie única, ainda que hajam distinções espaço-temporais entre indivíduos (quando e onde cada um existe e existiu), nosso modus operandi contínua o mesmo. Isso significa que desde sua origem, o Homo sapiens ama, odeia, se alegra ou se entristece basicamente pelo mesmo motivo: os desafios advindos de sua natureza social, gregária.
Eu costumo dizer que, por baixo do verniz cultural, todos nós ficamos inquietos da mesma forma quando nossos entes queridos adoecem, ou cheios de esperança quando nos sabemos amados por quem amamos. O que muda é apenas a forma como manifestamos esses sentimentos.
Assim, quando pensei em todos os eventos que acontecem na vida de Berenice, e na forma como ela reage a eles, eu os descrevi do ponto de vista de uma jovem contemporânea.
Berenice não sabe que o mundo que ela conhece está se dissolvendo. Ela também não imagina que estamos acompanhando sua história, mil e setecentos anos depois de ela ter vivido, pela tela de nossos aparelhos eletrônicos. Nem mesmo através uma das coisas que ela mais ama, que é a história escrita então?! Para ela, o mundo em que vive é o que há de mais moderno e com certeza, sendo uma adolescente, ela se empolga com as novidades de seu mundo e torce o nariz para o modo de vida primitivo de seus antepassados.
Essa perspectiva fortalece os laços entre mim e a pastora da Capadócia. Eu desejei contar sua história não porque acho que a Antiguidade Tardia é romântica – quando ouço alguém dizendo que gostaria de ter vivido em tal ou tal época, sempre pergunto “tem certeza?” – mas porque para mim representa o retrato de humanidade, uma prova de nossa unidade, nossa similaridade enquanto membros do mesmíssimo grupo.
No fundo, a minha esperança é que através da narrativa de Berenice da Capadócia eu possa, de forma modesta, mas sincera, contribuir para que consigamos entender que entre nós, humanos, não há o que nos separe, pois nós somos feitos da mesma essência.
Quem sabe?..
Sim, Berenice se tornou uma personagem bem humanizad e factível, capaz de transmitir suas impressões daquele ambiente como se usasse vestes atemporais, quero dizer, sem uma caricaturizaçao cultural.