Eles do passado, nós do presente
- A. Martins
- 9 de ago. de 2020
- 9 min de leitura
Atualizado: 23 de mai. de 2022

Eu tenho a sorte de estar passando as férias desse ano no sul da França, na região da Occitânia, numa casa de campo rodeada pelo som de cigarras. O calor é intenso. Como boa “curitibana”, a cada vez que o termômetro passa dos 30ºC eu começo a me arrastar pelos cantos, como uma criatura polar sofrendo com a mudança climática. Se eu ganhasse um Euro a cada vez que alguém comenta “mas você não é brasileira? devia estar acostumada com o calor!” eu já teria um saldo bem razoável. Para quem não conhece o clima de Curitiba, os dados do INMET dizem que a temperatura máxima registrada até 2010 foi de 32ºC, então imagine como eu me sinto com os 50ºC sob o sol ontem!
Mas, voltemos à vaca fria (quem dera), para falar dessa viagem.
Há muitas coisas que podem descrever a minha alegria em estar aqui. Eu não vou mencionar o fato de estar com minha família e com grandes amigos, porque esse não é um blog sobre minha vida pessoal. E eu nem saberia descrever como é bom estar com essas pessoas que amo tanto; passemos então às alegrias da historiadora e escritora.
Estou em Saint-Mamert du Gard, uma cidadezinha de 1634 habitantes(censo de 2017), cuja idade eu não encontrei, mas que tem uma igreja do século XII. Mas também não vim falar de Saint-Mamert du Gard e de seus 1634 habitantes . Quero falar de Nîmes e das reflexões que ela tem me inspirado.
Sob o governo do Imperador Augusto, no ano 27 de nossa era, a cidade é definitivamente incorporada ao Império Romano, sob o nome de Nemausus. Sessenta anos depois, ali se construiu uma arena, ou um anfiteatro, onde gladiadores combateram entre si e contra animais, num espetáculo que tem o nome bem apropriado de panem et circensis. Quem acompanha as práticas políticas vigentes até hoje em qualquer país, democrático ou ditatorial, não vai ficar surpreso em saber como essas coisas pouco mudaram desde que o primeiro Homo decidiu andar definitivamente sobre duas patas, feito que por si só lhe valeu a alcunha de sapiens.
E é justamente esse paralelismo, ou melhor, essa continuação do ser que me fascina e que se comprova, diante dos meus olhos, a cada ocasião como essa, de poder visitar um lugar habitado há tanto tempo e que ainda conserva tantos vestígios do passado.
A Arena de Nîmes, em tempos normais, serve de palco para inúmeros espetáculos, concertos e apresentações, especialmente no verão. Nesse ano de 2020, todos os eventos tiveram que ser cancelados. A razão? Eu sei que nem preciso dizer porque na sua cabeça você já respondeu COVID, em um átimo de segundo. Esse cancelamento é ruim. Muitas pessoas contavam com o trabalho estival e as consequências emocionais, sociais e econômicas do COVID ainda vão se fazer sentir por muito tempo.
Mas eu sou humana e tenho lá minha não muito pequena parte de egoísmo, então me permito ver o lado bom disso: eu pude caminhar pelo anfiteatro, das arquibancadas até a arena propriamente dita, o palco dos espetáculos romanos. E o que aprendi durante a visita guiada (muito bem organizada, por sinal), foi a confirmação de uma tecla que quem me conhece de perto sabe que venho martelando há tempos: não há o homem do passado e nós do presente.
Na foto desse post você pode ver pela arquitetura do anfiteatro, como os lugares eram distribuídos. Se você fizer uma rápida pesquisa no Google sobre os mais conhecidos estádios de futebol do mundo, vai ver na forma oval, nos arcos de entrada e nas escadas da plateia uma similaridade que não tem nada de coincidência.
E depois que eu te disser aqui como era um dia de espetáculos, talvez você veja ainda mais semelhanças e chegue à mesma conclusão que eu: ainda somos as mesmas pessoas, as mesmas criaturas sócio-político-emocionais de sempre. Ou pelo menos de dois mil anos atrás. Pronto para uma viagem no tempo? Então vamos lá:
Mas espere um pouco. Antes de começarmos, você deve escolher um papel. Porque desde que o homem é homem, somos todos iguais, mas como canta Humberto Gessinger, “todos iguais, mas uns mais iguais que os outros”. Entre o público que frequentava os espetáculos, temos:
Escravos e libertos (alguém que foi liberto da escravidão pelo seu senhor):
que são do sexo feminino;
que servem os pobres;
que servem os comerciantes;
que servem os ricos proprietários e comerciantes;
que servem os patrícios;
que tem cargos públicos (notários, contadores, tesoureiros, administradores, médicos, arquitetos)
que servem ao Imperador diretamente
Pessoas livres:
mas sexo feminino;
mas impúberes (crianças);
mas miseráveis (desempregados e desabrigados)
mas pobres (sem nome de família importante, trabalhadores rurais, operários de construção civil);
mas com uma renda suficiente para uma vida quase digna (pequenos comerciantes e artesãos);
mas ricos: comerciantes e proprietários de terra, que possuem escravos em número suficiente para lhes permitir uma vida longe do esforço braçal;
Cidadãos:
mas do sexo feminino;
mas patrícios: homens pertencentes à elite política, generais e comandantes militares, oriundos de uma família tradicional romana mesmo, ou de antigas tribos que se aliaram à Roma — como no caso de Nemausus ;
Como é possível distinguir uns dos outros, durante as festividades, já que o anfiteatro de Nîmes podia conter em seu interior o impressionante número de vinte e cinco mil espectadores? Muito simples: veja como cada um está vestido.
Mas antes, deixe-me dar a você um conselho: esqueça tudo o que viu nas séries, jogos ou filmes. Nessa época, assim como até pouco tempo, roupas eram artefatos caríssimos, que exigiam talento e tempo, e tecidos coloridos ou sofisticados eram importados de várias regiões do Império e isso exigia muito dinheiro. Assim, tenha em mente que durante os três dias de espetáculos e festividades, sendo um patrício ou um cidadão você terá direito de usar a sua provavelmente única toga e seu único manto. Se seu personagem nessa viagem for uma cidadã, você usará uma stola, um vestido no estilo da toga, que nada mais é do que um amplo tecido quadrado ou retangular que sua serva prendeu nos ombros por uma fíbula — um alfinete. Por cima da stola, porque você é uma mulher honrada e honesta, que preza pela sua modéstia, você vai colocar a palla, uma bonita capa ornamentada segundo o que a bolsa de seu marido ou pai permitir. E tenha certeza de que o pater familias que dirige sua vida lhe propiciará a melhor roupa possível. Porque os eventos sociais em Roma são a ocasião de ver e ser visto. E quem sabe fazer bons contatos entre um combate e outro, talvez mesmo consiga arranjar um bom casamento para sua filha, que acabou de fazer doze anos. E azar seu se está calor. Em nome do seu status social você vai vestir sua pesada roupa o dia inteiro, com orgulho e sem queixa. Mas não se preocupe, durante as apresentações, escravos passarão pelas arquibancadas aspergindo perfumes de lavanda e outras plantas, para disfarçar o cheiro de suor e outras secreções biológicas.
Se você for um liberto ou um escravo, você vai usar o que seu dinheiro permite comprar, mas de maneira alguma lhe será permitido vestir-se como um cidadão. Porque se hoje podemos nos brincar de parecer ricos de mentirinha com roupas e acessórios falsificados, em Roma isso não seria aceito. Cada um se veste de acordo com seu status. Então, nada de toga para você. Mas escravo ou liberto, é possível até que você seja mais rico do que o senhor a quem você serve, então escolha um tecido bonito para sua apresentação, tendo o cuidado de não se parecer com alguém que você não é. Porque se você for desmascarado, vai ser expulso da arquibancada a socos e pontapés!
Agora que já sabemos quem é quem, vamos distribuir o público pelas arquibancadas. Quem pode mais, chora menos, não é o que se diz? Nada disso: você vai sentar-se entre os seus, independente de quantos sestércios você tem na sua bolsa, porque os espetáculos nas arenas eram públicos e absolutamente gratuitos. Eu sei, é um pouco difícil de aceitar, visto que nos dias atuais não são as origens, mas o dinheiro quem dita as regras (mas seja o dinheiro, seja um sobrenome pomposo, não são os dois uma forma de distinguir os privilegiados dos desfavorecidos?). De qualquer forma, o "berço" continua distinguindo até os afortunados: se nos dias atuais você for um novo rico que foi convidado para uma festa entre famílias tradicionais, talvez você saiba do que eu estou falando.
Pelas 60 arcadas de entrada do anfiteatro, cada um encontrava seu caminho até seu devido lugar. Você escolheu ser um patrício: não se preocupe em ter que subir os quatro andares até lá no alto. Você tem um espaço reservado de frente para a arena, já nas primeiras fileiras. Um pouco acima de você está o governador da província, seus amigos próximos e para sua sorte, nesse dia, você vai estar a alguns passos do Imperador em pessoa.
Você é um homem livre, um cidadão, então pode se instalar ao longo do primeiro e segundo piso. Pode até se colar em volta da área VIP para dar um aceno ao seu senhor, que provavelmente vai fingir que não lhe viu.
Nos dois últimos andares, se espremem o resto de nós: escravos ricos e pobres, homens livres mas miseráveis, estrangeiros, crianças e mulheres. Sim, minha cara (caso você tenha escolhido ser uma mulher). Seja você uma escrava paupérrima, de um senhor paupérrimo, ou a esposa do governador, você vai se sentar entre a ralé. Porque na escala social romana, uma mulher é um ser infantil, desprovido de maturidade, assim como as crianças ou os escravos, ainda que entre esses últimos esteja alguém que antes de ser capturado tenha sido um grande senhor entre os seus. Mas você está feliz, porque até pouco tempo, você era mesmo proibida de entrar no anfiteatro.
De qualquer forma, nada disso importa, porque o espetáculo vai começar.
Ainda que a arena esteja quase completamente lotada, foram necessários apenas dez minutos para que todos entrassem, porque essa fantástica arquitetura permite que se entre e se saia com a maior fluidez, sem tumulto (ninguém aqui está dizendo que não haviam acidentes, mas o que importava era o espetáculo, azar do infeliz que caiu lá de cima).
Todos “em seus lugares”, escravos estendiam por sobre a arquibancada o velum, uma cobertura fixada por mastros, que circundava toda a arquibancada, protegendo os espectadores do sol e da chuva (isso lhe parece familiar?). Cada anfiteatro oferecia espetáculos de acordo com a importância da região. O Anfiteatro Flavianum, de Roma, era grande o suficiente para que os combates se fizessem com elefantes, girafas, leões e tigres.
O nosso anfiteatro de Nemausus não é dos mais pobres, pois a região é rica, mas ainda sim a arena é circulada por um muro de pouco mais de dois metros. Melhor deixar leões e tigres de lado. Mas haverão lobos, javalis, cervos, cães.Também vai ter música e um pouco de teatro nesses três dias.
Mas o que você quer mesmo ver é um combate entre gladiadores. Você quer ver homens desafortunados, que foram arbitrariamente escravizados e que agora são obrigados a se debater até a morte. Você quer ver o polegar do Imperador apontar na horizontal, em sinal de clemência, ou para baixo, como se ele fosse uma Rainha de copas dizendo “cortem as cabeças”. Sinto muito, mas eu vou te desapontar de novo. O tempo dos combates até a morte já passou, e nem durou muito. Agora os gladiadores são profissionais de luta. No lugar de Russell Crowe, ponha aqui um Anderson Silva. Mas se você não verá um combate até a morte, vai poder contemplar muito sangue, muita violência e poderá mesmo fazer apostas no seu combatente preferido, caso nesse período o jogos de azar sejam permitidos. Caso contrário, você vai apostar na surdina, entre entendidos, como no jogo do bicho. E se a ideia desse espetáculo de sangue desagrada você, não se preocupe, o nome arena vem da areia que era espalhada sobre o solo de combate, para absorver o sangue.
Mas ficar sentado sob a cobertura, empolgado com tanta euforia, dá fome. Mas não se preocupe. Uma versão romana do “vai uma pipoquinha, vai uma cervejinha, um cachorro-quente” passará nos intervalos. E o melhor de tudo, é de graça! E quando tudo estiver meio morno e você e seus camaradas de arquibancadas estiverem meio silenciosos e cansados, no lugar de pipoca e cerveja (o que eu quero dizer é carnes assadas, pão e vinho), vão ser atiradas moedas. Sim caríssima/o viajante do tempo, não só os espetáculos serão gratuitos, não só você vai poder comer e beber até arrebentar, mas você ainda vai ser pago para isso, como nota de agradecimento. Três dias de festividades sem gastar nem um centavo. À noite você pode dormir em casa de amigos, ou nas tavernas, caso tenha vindo de longe.
Aposto que agora você está dizendo “puxa, como esses romanos são bacanas, generosos, sabiam se divertir!”. Calma aí, que depois de tudo isso, agora é que vem o momento de trazer você de volta ao tempo atual. Toda essa generosidade tem uma razão e um preço. O Imperador providenciou o plano urbano da cidade de Nemausus, que foi executado às expensas dos senhores locais, porque queria assegurar a romanização dos volcos aretomicos, povo gaulês que combateu junto a Júlio César contra o também gaulês Vercingetorix há não muitos anos.
Já os espetáculos foram oferecidos pelo senhor de Nemausus, que ambiciona fazer crescer em importância o nome de sua família e, quem sabe, ter um de seus descendentes no senado e, porque não, no trono imperial (estratégia que renderá o fruto esperado em 138, com Antonino Pio). E quem oferece pão e circo, em troca recebe votos, apoiadores e força política.
Eis aqui, como a dinâmica entre ricos e pobres, mas especialmente o lugar que cada um ocupa na sociedade determina o destino de um povo através da política. Que sejam os espetáculos do passado, ou os comícios de hoje, as formas como somos governados às vezes depende menos da aptidão dos governantes do que da margem de manobra deles.
E se a dinâmica política não bastou para convencer você de que continuamos os mesmos, num próximo texto a gente pode conversar sobre algo mais simples, como a vida privada.
Espero que você tenha gostado do espetáculo.
**Se você não tiver a oportunidade de visitar a Arena de NÎmes e seguir a excelente visita guiada oferecida pela organização da Arena, você pode aprender um pouco mais sobre as batalhas na Gália e a derrota de Vercingetorix pelo próprio Júlio César, já que ele nos deixou suas experiências no livro: CÉSAR, Julio. A Guerra Gálica. O livro foi escrito entre 57-51 da Era Comum. Atualmente, há algumas edições comentadas traduzidas para os idiomas modernos.
Lincoln, fico feliz que você esteja gostando do blog e que ele te traga algo de novo. Eu tento tradizir o melhor possível o que vejo e aprendo <3
Sim Ale, realmente é impressionante passar por lugares que a gente só vê nos livros ou filmes. Dá uma dimensão real para a história.
É fascinante o seu texto e muito enriquecedora a descrição de detalhes culturais da época retratada. Sentimo-nos transportados para a história! Parabéns por seu trabalho e por compartilhar esse conhecimento!
Consigo apenas imaginar o quão emocionante é poder visitar a história viva.