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Não ceder a um mundo que já não lê

Atualizado: 23 de mai. de 2022


O tema é recorrente em vários outros canais de comunicação: as pessoas estão lendo menos.

Eu não vou citar aqui as prováveis razões para esse fenômeno. Ele é complexo, antigo e eu não tenho nenhuma autoridade para discutir esse assunto de forma a trazer alguma contribuição efetiva para a discussão. Mas, se você quiser se aprofundar na questão, deixo no final, só pra você, alguns links interessantes.

Eu não posso explicar porque as pessoas estão lendo menos. Mas eu posso defender a leitura e porque eu tenho me dedicado ao universo literário há algum tempo.


Eu sempre fui uma criança solitária na escola. Não apenas por estar mudando constantemente de cidade -- e como consequência ser sempre a “novata” da classe --, mas por viver imersa num mundo interno só meu. Demorou muito para que eu aprendesse a arte do small talk* e me tornasse uma adolescente mais sociável. Porque conversar com pessoas é uma arte que se aprende; são poucas as que conseguem navegar sem tropeços no redemoinho das relações sociais.

Toda pessoa que foi uma criança solitária sabe dos dissabores da solidão. Eu não pertencia a nenhum grupo, era sempre a última a ser escolhida para um time e nem sei se meus colegas lembravam de meu nome espontaneamente. Eu estar presente ou ausente provavelmente não fazia diferença.

Mas eu não vim aqui para chorar as pitangas sobre esse fato. Eu vim pra contar porque eu defendo o livro, o universo literário e a leitura (coisas que parecem sinônimos, mas não são). Pois bem, eu defendo essas ideias porque meu companheiro de infância e adolescência foi o livro.

E foram muitas situações que marcaram minha relação com a leitura, especialmente quando entrei na adolescência, período em que a solidão da infância deixa de ser uma noção vaga para se tornar algo concreto, pois é quando finalmente nos damos conta de nossa solitude.

A primeira anedota é a que eu considero o marco de minha entrada verdadeira, definitiva e sem volta, no mundo da leitura: foi quando meus pais fizeram entrar em casa uma enciclopédia, daquelas de venda porta-a-porta, que talvez alguns de vocês tenham conhecido.


Foi amor à primeira vista. Eu fiquei tão encantada que não sabia qual ler primeiro, se a enciclopédia médica ou Moby Dick.

Pois foi a enciclopédia médica que respondeu muitas de minhas dúvidas sobre puberdade, época em que a gente quer saber, mas não tem coragem de perguntar. Foi também com ela que eu peguei a mania, que é bem bizarra, eu admito, de usar termos médicos para as doenças e anatomia humana (não é tirar as amígdalas, é amigdalectomia. Não estou com dor nos ombros, mas no músculo trapézio e dor nas costas tem que vir acompanhada da indicação cervical, torácica ou lombar). As páginas tinham um odor característico de papel brilhante e impressão fotográfica que eu nunca esqueci. Os “ratos de biblioteca” que lêem esse texto vão saber do que eu estou falando. Eu gostava de ler só pelo prazer de conhecer. Mas sem que eu percebesse na época, foi essa coleção que me fez amar e valorizar a ciência. O texto era técnico, mas acessível, e ali, aos poucos, ia se revelando para mim a história das descobertas, a importância da pesquisa científica e como a vida era mais sofrida e incerta antes dessas inovações.


Já Moby Dick inspirou a minha série de ilustrações bem amadoras de cachalotes. Devo ter rabiscado uma centena delas em tudo quanto é folha de papel. Até hoje a abertura do livro me fascina. Três palavras apenas, mas que ditam a força da história: “chamai-me Ismael”. E se até hoje não sei como pronunciar Quiqueg, minha memória tem perfeitamente delineada a imagem desse arpoador, de poucas palavras que dizem muito. Lembro-me que, entusiasmada com o livro, eu escrevi espontaneamente uma redação de várias páginas que corajosamente propus ler para a classe, numa aula de português.


Também me lembro nitidamente da reação da professora, que na metade da segunda folha me cortou com um “vai demorar muito pra terminar?”. Tenho quase certeza de que ela me detestava — professora Sônia, se você estiver lendo esse texto, é de você mesma que estou falando — mas justamente porque minha redação foi inspirada pelo livro e não pelas aulas que a opinião da professora não teve muita importância para mim. Em minha visão de menina a professora Sônia não gostava de histórias, portanto ela não poderia entender do que eu estava falando.

Foi nessa época que eu deixei a escola primária para entrar na quinta série (hoje sexto ano), no colégio dos grandes. Eu era um toco, e ainda por cima estava um ano adiantada. Por isso mesmo o colégio me parecia grande demais para mim. Eu andava pelos cantos perdida como um cordeiro longe da mãe, e ainda mais distraída no meu universo particular de fantasia e aventura alimentada pelos livros. Poucos dias depois do início do ano letivo, eu descobri a biblioteca. Ao escrever essas palavras, nesse momento mesmo, me vem o som de um coro de anjos e uma luz diáfana pela simples menção do nome “Biblioteca”!


Por mais esforçados que meus pais fossem, o número de obras que tínhamos em casa era bem limitado. Mas ao passar pelas portas da Biblioteca do Colégio Estadual Ivo Leão, eu entrei no universo que até ali só existia em minha cabeça.

De um momento para outro eu podia ir das viagens espaciais até o Egito Antigo. Era como se o mundo todo coubesse naquela sala. E para completar esse espaço de liberdade e conquista do mundo, havia um globo, que eu girava para logo em seguida, de olhos fechados, apontar aleatoriamente para saber onde eu iria viver quando crescesse — em algum momento eu devo ter apontado a França!


A experiência já estava sendo determinante para influenciar para todo sempre o meu espírito, mas foi no momento em que eu procurava um livro para emprestar — como eu me sentia poderosa tendo a “carteirinha da biblioteca” — que caiu em minhas mãos uma obra cujo título, do alto dos meus dez, onze anos, eu achei engraçado: A divina comédia, de um certo Dante Alighieri. Era um livro grosso, mas já ali eu sabia que não importava o número de páginas. E eu li a viagem de Dante, que tinha como guia ninguém menos que Virgílio e também a bela Beatrice (qualquer aproximação com Berenice não é mera coincidência!). E depois disso nunca mais parei.


Após esse encontro, eu passava muito tempo entre as estantes da biblioteca. Era meu refúgio de silêncio, não-julgamento e fantasia. Era o lugar onde eu podia aprender apenas o que me interessava.

Com o passar do tempo eu fui fazendo amigos, e a biblioteca foi se tornando um porto seguro para o qual eu já não precisava fugir, mas que eu visitava pelo simples prazer do reencontro.


Nos anos que vieram, a leitura de Dante me preparou para muitos outros livros. Foi também Dante que me mostrou que todo livro tem seu valor. Sim, porque se eu li essa obra tão complicada e respeitada até hoje, eu também li romances água-com-açúcar (num deles eu aprendi sobre a diáspora dos sobreviventes do holocausto e sobre o iídiche), e chorei rios de lágrimas com um livro da coleção do Reader’s Digest: uma história sobre uma professora que se instala num vilarejo quaker no século 19.

Eu não me considero uma grande leitora — e eu falo sério —, mas o livro ocupa uma parte importante em minha vida e em meu bem-estar. Até hoje eu preservo o meu mundo interior e eu considero que é o livro que me permite isso.

O livro me dá repouso, alento. Ele me tira de momentos difíceis para me levar para vidas e paisagens que me são desconhecidas. No instante em que começo a ler eu deixo de existir para me tornar simples observadora. Sem problemas ou compromissos. Sem aflições ou expectativas. Apenas observo.

E é por isso que para mim, acima de tudo Berenice da Capadócia é uma homenagem ao mundo da contação de histórias. O ciclo de passagem de bastão entre Matathias, Berenice, Flavius e o leitor celebra essa nossa capacidade humana de nos abstrair, sair de nós mesmos para imaginarmos soluções para as perguntas da vida através da história inventada da vida alheia. A aventura de escritora não tem sido fácil. É difícil cativar o público, convencer as pessoas a darem uma chance ao livro. Mas eu acredito nele. Eu acredito no poder da leitura porque eu mesma sou uma beneficiária desse poder.


Há muitas razões pelas quais as pessoas não lêem ou deixam de ler e cada qual sabe o que faz vibrar sua alma. Mas caso você esteja se perguntando se vale a pena gastar alguns minutos de seus dias imerso ou imersa nas páginas de um livro, eu só posso te felicitar. Escolhendo ler você está se permitindo um encontro com um amigo fiel, que tem o dom da palavra e que sempre vai refletir o melhor de você mesmo.

Boa leitura.



Aqui estão os links para você entender qual a relação do Brasil com a leitura:


 
 
 

2 comentários


A. Martins
A. Martins
08 de jun. de 2021

A leitura nos aproxima = )

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lincoln hartmann
lincoln hartmann
04 de jun. de 2021

Bela história sobre a infância e a construção desses valores literários. Por uns instantes foi possivel vivenciar suas sensações e sua realidade, algumas que também me soaram familiares a mim. Abraço, escritora (porque o que mais fazem suas palavras escritas quando nos envolvem?)

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