O Brasil e o livro
- A. Martins
- 27 de ago. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 23 de mai. de 2022
Comecemos pelo começo.
Há alguns dias, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu o retorno da tributação sobre livros no Brasil. A proposta movimentou as redes sociais e as páginas de jornais. De tudo o que vi a respeito, aparentemente a maioria das pessoas que se manifestaram são contra a taxação. Normal: livro no Brasil é caro. Uma pesquisa rápida no site de uma grande rede de livrarias mostra uma média de 30 reais por um livro novo.
Eu queria ter uma ideia desse custo para o bolso do brasileiro em relação à outros países. Como não gosto muito da ideia de comparar em dólares americanos, que para mim é uma referência vaga, eu vou fazer uma comparação com o salário mínimo local.
Vamos lá:
para um brasileiro, um livro custa em média 30 reais e o salário mínimo é de R$1045 (2,9%).
para um francês, um livro custa em média 12 euros e o salário mínimo é de € 1525 (0,8%)
para um argentino, um livro custa em média 400 pesos argentinos e o salário mínimo é de ARS$16875 (2,4%)
para um indiano, um livro custa em média 150 rúpias e o salário mínimo é de ₹9750 (1,5%)
para um norte-americano (estadunidense), um livro custa em média US$17 e o salário mínimo é de US$1256 (1,4%).
Pois é, livro no Brasil é caro. Mas o que mais me impressiona nessa história de tornar o livro ainda mais caro é a ideia, o conceito que está por trás da precificação e popularização do livro. E uma frase do ministro, para mim, diz tudo:
“Agora, eu acredito que eles, num primeiro momento, quando fizeram o auxílio emergencial, estavam mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos” .
(Paulo Guedes, atual Ministro da Economia)
O ministro está se referindo às prioridades da população de baixa renda em relação ao plano de auxílio emergencial lançado há pouco. Ninguém com um mínimo de noção vai dizer que quando falta alimento para o corpo, a alma procura alívio nas letras. Não! Quando nos falta alimento, saúde, moradia, queremos e precisamos de dinheiro para sanar esses problemas. O livro poucas chances de entrar na ordem do dia.
Não, o que me marcou não foi a constatação das prioridades da população de baixa renda. O que me marcou foi o “eles e nós”.
Eu me explico: o bicho-homem é um só. No Brasil, na França, na Índia, no Sudão, em Petropavlovsk-Kamchatsky, todos buscamos a mesma coisa, quando se trata da existência do corpo: viver bem. Barriguinha cheia, saúde em dia, uma fonte de renda digna, um abrigo, nem frio, nem calor demais, ponto.
Nem Jeff Bezos nem João da Silva querem sobreviver. Todos queremos viver. Não existe isso de “eles e nós”! O que existe é uma diferença de acesso às benesses mencionadas acima. Aos que não tem o mínimo, não é dada nem a escolha de ignorar o livro. Menos ainda a oportunidade de “frequentar as livrarias que nós frequentamos”.
A fala do ministro denuncia uma distanciação, uma categorização de uma parte da sociedade. Os pobres não lêem. Os pobres tem outras preocupações. Os pobres não são como o ministro. Então eles não entram na pauta da cultura. A opinião do pobre não importa.
Não vou colocar mais dados aqui porque senão daqui a pouco você vai desistir de ler esse texto, mas em termos de economia mundial, um índice importantíssimo para se determinar a riqueza de um país é a educação.
A Índia que o diga: nesta última década o percentual de iletrismo vem caindo, enquanto o acesso a um longo período de educação vai aumentando. E esse não é o único exemplo de país que cresce em educação e economia. Finlândia e Japão tem muito a nos dizer sobre o assunto.
Pensando nisso tudo, fiquei curiosa em saber quais são os benefícios reais, concretos, mensuráveis da leitura, e achei uma pesquisa científica da Carnegie Mellon, em Pittsburgh (EUA). O estudo, um programa de seis meses de seguimento diário de leitura para crianças que lêem pouco, chegou a um resultado interessante: a massa branca do cérebro das crianças que foram estimuladas e ensinadas a ler todos os dias, durante seis meses, aumentou, em relação ao grupo de controle. A consequência disso? Essas crianças aprenderam a se comunicar melhor, a escrever melhor. Falando de forma bem tosca: essas crianças melhoraram seus cérebros! E ninguém falou em que tipo de leitura, apenas em ler.
Eu não posso me furtar de imaginar a diferença que o acesso e o estímulo à leitura poderiam fazer na sociedade brasileira. Imagina as pessoas mais preparadas para o trabalho, mais aptas para compreender textos, mais capazes de desenvolver o pensamento abstrato? Sim, porque ler nos ajuda a ter experiências. Outros estudos mostram que o cérebro interpreta uma história lida de forma concreta, como se o leitor estivesse realmente vivendo a experiência.
I
magina esses benefícios estendidos à todas as classes sociais?
Eu não sei se taxar os livros vai ajudar na economia do país. Mas não é preciso ser especialista para concluir que se o preço do livro subir, ele vai ser um bem de acesso ainda mais difícil. E fazer crescer os índices de educação sem livros é meio complicado.
O que soa engraçado, quando a gente pensa que um Ministro da Economia deveria ser o primeiro a ter esse raciocínio.
E se a educação de um país não melhora, como é possível fazer crescer a economia, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), de um país?
Veja que uma proposta tão “inocente” esconde nefastas consequências. Não pelo imposto em si, mas pela simbologia do objeto: o livro.
O livro é um dos primeiros itens a ser proibido nos regimes totalitários, e não por acaso. E para justificar essa proibição, uma das primeiras ações desses governos é vilipendiar o livro. Alguns o satanizam, outros o tornam objeto de desprezo do povo, ao dizer que só a elite pode ler.
Conclusão: o que está em jogo é muito mais do que o preço do livro. A questão que deve ser colocada é “Porquê o livro no Brasil é um produto de elite”.
A gente continua essa conversa no próximo blog.
Alguns dados sobre livros, no Brasil e no mundo. Mas antes, deixa eu explicar: nos sites oficiais do governo, há informações de que o brasileiro lê 4,4 livros em média. Mas conseguir verificar esses dados é difícil. Então eu usei o melhor que pude os dados sobre vendas de livros, excluindo os livros didáticos e total da população. Então, se o brasileiro não lê 1, de qualquer forma só lê no máximo 4 livros por ano, quando se trata de aquisição própria, não de empréstimos em biblioteca.
Brasil 2019 :
Livros não didáticos (vendidos): 209 milhões
População 2019: 210 milhões
Livro per capita/ano: 0,99 livro por pessoa
França 2018:
Livros não didáticos (vendidos): 369 milhões
População 2018: 67 milhões
Livro per capita/ano: 5,5 livro por pessoa
Taxas sobre o livro: SIM
Argentina 2018:
Livros não didáticos(produzidos): 43 milhões
População 2018: 44 milhões
Livro per capita/ano: 0,97 livro por pessoa
Taxas sobre o livro: NÃO
India 2019:
Livros não didáticos(produzidos/vendidos): dados não disponíveis
População 2019: 1,3 bilhão
Livro per capita/ano: 109 livro por pessoa (segundo pesquisas, um indiano lê 2,1 livros por semana)
Taxas sobre o livro: NÃO
Estados Unidos da América 2017:
Livros de todos os gêneros (vendidos): 2,7 bilhões
População 2017: 325 milhões
Livro per capita/ano: 8,3 livro por pessoa
Taxas sobre o livro: SIM
Sobre o que é a Matéria branca, no cérebro humano:
“Considerado por muito tempo como tecido passivo, a matéria branca afeta a aprendizagem e as funções do cérebro, modulando a distribuição dos potenciais de ação, atuando como transmissor e coordenando a comunicação entre diferentes regiões do cérebro”.
Fontes:
https://snel.org.br/wp/wp-content/uploads/2020/06/Produ%C3%A7%C3%A3o_e_Vendas_2019_imprensa_.pdf
https://www.culture.gouv.fr/Sites-thematiques/Livre-et-lecture/Actualites/Chiffres-cles-du-secteur-du-livre-2017-20182
https://www.batimes.com.ar/news/culture/argentinas-beloved-book-industry-hopes-to-weather-crisis.phtml
https://www.thehindu.com/books/authors-are-vying-with-pokmon-and-taylor-swift-meghna-pant/article26606836.ece
https://publishingperspectives.com/2018/07/us-statshot-publisher-survey-2017-estimates-revenue/
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-08/guedes-sugere-doacao-de-livros-pobres-em-vez-de-isencao-editoras
https://journals.lww.com/neurotodayonline/fulltext/2010/01210/White_Matter_Brain_Changes_Result_from_Reading.9.aspx
Douglas Fields, R. (2008). "White Matter Matters". Scientific American. 298 (3): 54–61. Bibcode:2008SciAm.298c..54D. doi:10.1038/scientificamerican0308-54.
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