People get ready
- A. Martins
- 9 de mar. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 23 de mai. de 2022
O sol está levantando e a estação está lotada. Na plataforma a multidão se agita com os últimos preparativos da viagem. Uns carregam tudo o que é necessário para atender a quaisquer necessidades do trajeto, outros não levam nada. Mas ainda que cada um carregue bagagens diferentes, todos viajarão no mesmo tipo de vagão. Não há atrasos ou adiantamentos: tudo flui pontualmente de forma muito organizada. Entretanto, nenhum passageiro recebeu informações sobre como se desenvolverá a viagem.
O trem finalmente chega e todos embarcam. Os lugares são determinados pelo tipo de bilhete, previamente adquiridos não pelos próprios passageiros e sim por suas famílias. Obviamente há uns raros ocupantes a quem o bilhete foi dado por uma família rica. Esses têm assentos confortáveis, espaçosos, privados. Essas instalações são tão distintas e em tão pequeno número, que acabam parecendo uma anomalia, como se fossem assentos que pertencessem a outro trem. O fato é que a grande maioria dos passageiros ocupa assentos comuns.
Na verdade, visto de longe todos os assentos são iguais, mas nessa longa viagem, os detalhes farão grande diferença, pois algumas poltronas são limpas, com estofamento impecável, enquanto outras têm tecido gasto, às vezes esburacado, com molas aparentes que causam desde um simples desconforto até ferimentos importantes. Há poltronas tão danificadas que causarão o desembarque antecipado de muitos.
Seria esperado que as poltronas confortáveis oferecessem a seus ocupantes uma viagem sem incidentes, mas ao longo do trajeto eles também acabam por sentir algum desconforto. Não existem poltronas perfeitas!
Uma vez que todos tenham se instalado em seus devidos lugares, o trem inicia seu longo trajeto. A origem e o destino final tem pouca importância: o que conta para todos é a viagem.
E os passageiros, quem são?
Em aparência todos são iguais. Não seria exagero dizer que quem viu um, viu todos. Um ou outro detalhe aqui e ali, mas visto de uma certa distância, eles formam um só grupo. O que os distingue não são os traços físicos, mas sim suas personalidades. Isso porque serão o temperamento, a atitude e a adaptabilidade o que determinará a percepção de cada um do sucesso ou fracasso da viagem.
Mas não há um espaço determinado para cada categoria. Não há o vagão dos insatisfeitos, ou dos alegres, ou dos belicosos e assim por diante. Não! Todos estarão “juntos e misturados”. Não esqueçamos: é o mesmo trem para TODOS.
O que significa que ao longo do trajeto todos terão que encontrar maneiras de conviver. E é aí que a viagem fica interessante. Não só cada passageiro terá que lidar com suas próprias necessidades e expectativas, mas também com as necessidades e expectativas de seu vizinho de poltrona, de fileira, de vagão e de todo o comboio, pois muitíssimos viajantes vão acabar mudando de assento durante o caminho. Vejamos como alguns ocupantes vão viver a experiência.
Sentado à janela há uma pessoa que tudo observa. Nenhum detalhe lhe escapa e ela analisa o comportamento de cada passageiro em que seus olhos pousam. Ela espera dos outros ocupantes um certo tipo de atitude que apenas ela sabe qual é. É uma pessoa muito crítica com o outro, mas também consigo. Sua viagem provavelmente será insatisfatória pois há grande probabilidade de que suas expectativas nunca sejam satisfeitas. Essa pessoa está tão ocupada em seu mundo de criticismo que nem ao menos observa a paisagem que se desenrola pela janela. Ao final da viagem ela não saberá dizer se o trajeto era bonito ou feio.
Há muitas e muitas famílias viajando juntas. Para elas a viagem se desenrola sem contratempos e todos estão bastante confortáveis nos lugares que ocupam. Parece que nada vai estragar o passeio. Mas o trem faz muitas paradas e numa delas, sem que ninguém entenda o porquê, alguns membros desembarcam para não mais reembarcar. Quando o trem retoma o trajeto, os que continuam ficam completamente perdidos. Passado um tempo, algumas famílias conseguem reencontrar seus lugares e sua serenidade. Eles continuam, talvez menos alegres do que antes, pois prefeririam continuar todos juntos, mas eles ainda são capazes de continuar aproveitando a viagem. Já para outras a confusão causada pela saída de um familiar é perturbadora demais. Eles não conseguem mais se reorientar e acabam por não mais encontrar seus assentos, dispersando-se ao longo dos vagões. Há inclusive aqueles para quem a falta é tão grande que eles perderão completamente o interesse pelo resto da viagem.
Muitos assentos são ocupados por passageiros exigentes. São pessoas que esperam que suas necessidades sejam permanentemente satisfeitas. Elas estão tão ocupadas consigo mesmas que nem se interrogam sobre a existência dos outros. Qualquer desconforto ou contrariedade e elas exigem em alto e bom tom que alguém resolva o problema. Alguns desses passageiros encontram outros dispostos a atendê-los, mas uma grande parte termina a viagem sozinha pois seus vizinhos, cansados de tantas exigências e tendo outras coisas para fazer, acabam mudando de lugar.
No sentido contrário aos exigentes, há aqueles que passam todo o caminho atendendo às necessidades dos outros. Estão sempre parecendo alegres e dispostos a abrir mão de seu sossego para ajudar o próximo. Entre essas pessoas há as que o fazem de forma tão natural que é evidente que o altruísmo faz parte de sua bagagem. Para elas, o bem-estar geral é o que determina o prazer da viagem. Mas nem todos os passageiros sorridentes e prestativos assim agem de forma natural. Muitos o fazem para não terem que se confrontar à sua própria experiência de viagem. De maneira geral elas estão insatisfeitas com seus lugares e apegar-se a outro passageiro lhes evita terem que ficar ali sentadas. O problema é que essas pessoas não só acabam por impor sua solicitude, mas também esperam gratidão e reconhecimento por uma ajuda que geralmente não foi solicitada. Viajar ao lado dessas pessoas acaba se tornando cansativo.
Uma outra categoria - e ela é bem grande - é a dos ansiosos. Ainda que ninguém no trem saiba de onde ele veio e para onde ele vai, essas pessoas passam todo o caminho se perguntando sobre o que virá na próxima curva. Algumas são tão inquietas que se colocam na extremidade dianteira do vagão, a cara colada na janela, tentando ver o que se passa à frente. O problema é que a visão é limitada e as chances são de que elas interpretem erroneamente o que viram: uma simples nuvem parece uma tempestade e um raio de sol cria a ilusão de um céu sem nuvens. Por causa desse medo do desconhecido, alguns colocam-se colados na extremidade traseira do vagão, olhando o que passou e sentindo nostalgia pelo trajeto já trilhado, que não foi necessariamente bom, mas por ser conhecido traz a elas um conforto. Esses passageiros vão acabar perdendo a oportunidade de viver tantas coisas interessantes que se passam do lado de dentro do vagão em que viajam.
Um grupo curioso é o dos desinteressados. Desde o embarque - a quem alguém teve que não só mostrar o caminho, mas conduzi-los até ali - eles simplesmente se instalam em suas poltronas e por ali ficam, não se importando com nada do que se passa no trem. Nada solicitam, mas também nada oferecem. Que o trajeto seja longo ou curto, que hajam acidentes, que seus companheiros desembarquem antes do destino final, nada disso importa. Essas pessoas viajam num estado de apatia constante. Algumas, porém, conseguem despertar em algum momento em que o trem sofre solavancos. A partir daí elas conseguem interagir e aproveitar. Nenhum passageiro do trem é obrigado a fazer todo o trajeto no mesmo estado de espírito.
Um grupo pequeno, mas do qual qualquer um pode escolher fazer parte a qualquer momento da viagem é o que pode ser chamado de passageiros despertos. Esses são os que conseguem assimilar as inconstâncias e incertitudes da viagem. Durante todo o trajeto eles estarão dispostos a fazer concessões e tentarão o melhor que puderem se adaptar às circunstâncias, pois até aqueles bem instalados no início podem acabar tendo que mudar para poltronas mais desconfortáveis. O que não significa que eles são indiferentes à viagem; como qualquer outro passageiro eles também se entristecem quando um próximo desembarca no caminho e também se preocupam com o que os aguarda no trajeto, só que elas aceitam as incertitudes. Muitas delas, inclusive, estão tão à vontade com isso que conseguem aproveitar cada instante de calmaria, sem medo da próxima curva ou túnel escuro. Esses passageiros dialogam e trocam ideias com seus vizinhos de vagão, participam das atividades propostas pela organização do trem e recarregam as energias, nos momentos mais conturbados, apreciando a paisagem que se desenrola pela janela e que nunca se repete.
Há muitos outros tipos de passageiros, alguns tão únicos que não cabem em nenhuma categoria. E se alguém perguntar aos ocupantes quem é o maquinista (se é que há um), quem construiu o trem ou quem faz sua manutenção, vai ouvir as mais diversas respostas, pois como foi dito antes, essa viagem é tão bem organizada que dispensa controladores e tripulação, então ninguém pode afirmar com certeza como a viagem acontece. Mas essa talvez seja uma pergunta desnecessária: uma vez embarcado, a viagem acontecerá, independente da vontade do que quer que seja. O que fará diferença ao final do trajeto é que tipo de passageiro cada um escolhe ser.
Que ideia genial! a fantástica viagem da existência sob a ótica espiritual, e o livre arbítrio. Excelente.