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Porque “jornada do não-herói”?

Atualizado: 23 de mai. de 2022


Já faz aproximadamente dois mil e setecentos anos que a cultura humana navega na jornada do herói. Há vinte e sete séculos fomos apresentados à Ilíada e à Odisséia e os nomes de Aquiles, Odisseu, Telêmaco, Paris e Hector - entre tantos outros - entraram em nossos vocabulários (quem nunca descobriu o “calcanhar de Aquiles” de alguém ou de algo?). Quando o primeiro jovem recebeu o primeiro chamado místico, passamos a ser testemunhas de uma sequência infindável de heróis que deixaram seu lar, encontraram um mentor, descobriram possuir um poder excepcional, enfrentaram muitos perigos, caíram, levantaram, venceram seus inimigos para finalmente retornarem vitoriosos para seu povo, agora reconhecidos em todo o seu esplendor de herói (ufa!); desde então, esse ciclo tem se perpetuado em todas as artes. Foi em 1949 que Joseph Campbell cunhou a expressão “a jornada do Herói” ou monomito. Nos Tempos Modernos essa estrutura narrativa é tão onipresente como se tivesse sido inventada há pouco tempo. A característica dessa “jornada do Herói” que sempre me marcou muito é a do reconhecimento. Não basta ter um “coração valoroso”, grandes poderes e grandes responsabilidades: o herói inicia a caminhada subestimado, maltratado e solitário. É apenas quando ele salva justamente aqueles que o desprezaram que tudo muda e ele é então investido de todas as qualidades possíveis (isso até que no próximo episódio comece tudo de novo). Até mesmo o público infanto juvenil é consumidor dessa narrativa. Rainhas do gelo, pandas mestres em artes-marciais, uma jovem que se transveste de homem para enfrentar o exército huno, um menininho que acaba enfrentando o maior bruxo de todos os tempos... filmes, livros e HQs, entre outras manifestações da criação de histórias estão saturados da mesma mensagem: para ter valor e uma vida que vale a pena, é preciso ser herói. Quando eu comecei a delinear os primeiros contornos de Berenice, muitas possibilidades de narrativa se passaram em minha cabeça. Sendo eu mesma uma fã do tema jornada do herói e de literatura fantástica, eu cogitei algo grandioso para ela. Mas, quanto mais a história ia se moldando, mais esse modelo me incomodava e eu me perguntava “afinal qual o valor disso?”. Eu mesma quando termino a leitura de um livro desse tipo sinto um misto de empolgação e frustração. Enquanto lia O temor do sábio e O nome do vento (Patrick Rothfuss, pela Editora Arqueiro), a cada vez que o talento de Kvothe lhe permitia uma maneira genial de resolver seus problemas eu vibrava em “uaus” e “carambas”, para depois me dizer que nunca existiu nem existirá ninguém assim; e ali minha identificação vacilava. Isso era ainda mais marcante durante minha adolescência e juventude.

Afinal, só temos valor quando fazemos algo grandioso? Quando uma criança sofre bullying na escola, não é esperando dela que ela faça algo de extraordinário, que cause admiração nos seus algozes, que as coisas irão se resolver. Não dá pra prestar atenção nos esquecidos da sociedade só quando eles têm atos heróicos, salvando cãezinhos ou devolvendo carteiras cheias de dinheiro. Jornadas de herói são histórias muito bonitas de superação e coragem mas mesmo em tempos de superexposição social, de forma geral ninguém está interessado em nossas batalhas diárias e muitas vezes a gente só senta e chora as perdas, sem saber o que fazer. Por isso mesmo Berenice está fora do molde jornada do Herói. Ela não tem nada de extraordinário, nada nela é muito: beleza, inteligência, amabilidade, coragem, nenhum desses atributos são impressionantes nela. Se vivesse hoje, ela seria uma pessoa invisível na fila do supermercado. Ela não mudará nada nos rumos da história. Não se aplica a ela nem mesmo um efeito borboleta. Por todo o tempo em que viverá, ela só fará diferença para aqueles que conviveram com ela. Para uma população estimada entre 60 e 70 milhões de pessoas, o impacto da existência de Berenice é nulo. Agora você deve estar se perguntando “mas por que então escrever um livro sobre alguém tão sem graça”. A razão é muito simples: para mim o simples fato de estar vivo é extraordinário! Todos os dias, por toda a nossa vida somos confrontados a tantas situações que exigem de nós esforço e determinação. Eu tive a chance de conhecer muitas pessoas incógnitas mas extraordinárias, cujas vidas mereciam ser narradas em um livro, mas que nem percebem o quão fantásticas elas são. À sua maneira, Berenice também tem uma jornada que vale a pena ser contada. Sendo um romance histórico em que você será transportado até os tempos do Império romano do século III, há nela todos os elementos que dão brilho ao fio da vida. Drama, tensão, romance, amizade e muitas surpresas estão em Berenice da Capadócia: a jornada do não-heroi. Mas tudo isso de forma extraordinariamente comum. E é por isso mesmo ela está ao alcance de cada um. P.S.: ainda que na língua portuguesa exista a palavra heroína, o termo não-herói foi escolhido justamente para dar ênfase a tudo ao que o livro se opõe. Mas isso é tema para outra conversa!

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