Saber ou não saber, eis a questão
- A. Martins
- 20 de abr. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 23 de mai. de 2022
Todos os dias o ritual se repete. Ela acorda ao som suave, mas intrusivo, do despertador de seu celular. Antes mesmo de despertar - porque para acordar basta abrir os olhos, já pôr a máquina do cérebro para funcionar demora um pouquinho mais - ela desenha o código de desbloqueio e vai direto para as informações. Entre periódicos locais, nacionais e internacionais, páginas mais ou menos científicas e, porque não, um ou outro site de humor, porque a vida não precisa ser amarga, ela se equipa de toda informação que acredita ser necessária para tocar o dia. E finalmente esse dia pode começar. Mas um pensamento fica latente na mente da mulher: qual a utilidade de tanta informação? Paradoxalmente, é justamente o apanhado de informações que ela coletou ao longo de sua vida que traz fundamentos para uma provável resposta. Scientia potestas est, conhecimento é poder, disse Thomas Hobbes; mas também há o adágio - uma interpretação possível dos escritos de Aristóteles - “quanto mais sei, mais sinto que não sei”. Surge então, como muitas vezes, o desejo de ficar em paz, de exercer o direito à ignorância. Afinal, que diferença faz, para ela e para o mundo, o que ela sabe ou ignora? Ela leu em algum lugar que, durante a vida, uma pessoa mantém laços sociais estáveis com 150 outras pessoas ou, como disse quem conduziu o estudo, “pessoas com as quais você não se sentiria embaraçado em se juntar, sem necessitar convite, se as encontrasse casualmente num bar”. Isso significa que sua esfera de influência alcança 150 pessoas, e essa influência é limitada. Das 150, quantas entre elas dão importância ao que ela faz ou pensa? E todas essas informações que ela captou em sua leitura matinal vem com um peso grande. Por mais que se esforce em manter um equilíbrio entre boas e más notícias, grande parte do que lê causa um nó na garganta, mais ou menos oprimente conforme a época, mas onipresente. Ela se lembra de ter visto que “más notícias vendem mais” (será mesmo?!), e que talvez seja por isso que ela tenha essa impressão de estar sufocada, de viver em permanente estado de “bater ou correr”. Talvez fugir para uma ilha deserta! Ela procura então informação sobre se ainda existem ilhas desertas e descobre que sim! ainda existem ilhas desertas. Mas elas estão desertas por uma boa razão. De qualquer forma, se foram catalogadas é porque alguém já foi para lá e para lá pode voltar, trazendo consigo as notícias do mundo. Então por hora ela conclui que não é possível fugir. O dia termina e a mulher, com a mente exausta, toma uma decisão: no dia seguinte, nada de informação! Ela não abrirá links, não assitirá o jornal, não abrirá um livro. Nada. Niente. 24 horas da mais pura ignorância. Amanhece. O despertador toca. Ela pega o celular, mas lembra-se de sua decisão no dia anterior e logo o abandona. Ela se levanta e se prepara para o novo dia. Um dia sem informação, um dia sem se importar com o que acontece ou deixa de acontecer; Durante todo o dia, nenhuma informação chega até ela propositalmente. O dia vai terminando e chega a hora de fazer uma breve análise do resultado. Que decepção! Que dia bizarro. Nem a mulher conseguiu sentir-se menos tensa, nem o seu mundo, nem o restante ficou melhor ou pior. Ainda por cima, a ignorância, o não saber o que se passa ao seu redor a coloca na tal ilha deserta quando a idéia já tinha sido descartada. E a dúvida persiste: conhecer ou ignorar? Por mais que a mulher se esforce, um ciclo de 24 horas não é suficiente para nenhum ser humano apreender tudo o que se passa nesse intervalo. A ignorância é uma constante, e toda informação que nos chega é apenas uma gota num oceano. A mulher sente-se como o burro correndo para apanhar a cenoura, presa à sua frente por uma vara amarrada nele mesmo. Mas então a mulher tem um vislumbre: o burro atrás da cenoura não está parado. Ele tem um objetivo, um estímulo. Conhecer, saber, por pouco que seja, faz com que a mulher sinta-se estimulada, viva, partícipe da vida. Se a “ignorância é uma benção”, essa benção só funciona quando ainda não estamos aptos a saber. Uma vez adultos, já era, as informações chegarão de uma maneira ou de outra. Então a mulher volta às fontes e relê, mesmo com suas limitações, os Aristóteles, Hobbes, artigos de jornais, sites científicos, revistas e tudo o mais a seu alcance e decide que para os próximos dias, ela continuará sua busca pelo aprendizado, pela informação que, se por um lado é um fardo, por outro acaba por ser libertador. Quanto mais ela sabe, por pouco que seja, menos será prisioneira da ignorância e quem sabe, poderá tomar melhores decisões. E, se em seu círculo restrito de 150 relações humanas ela é apenas mais uma, ao menos ela se esforça para que a gota de oceano de sua contribuição seja límpida. E que se ela correrá eternamente atrás da cenoura, ao menos essa será “a” cenoura, uma pela qual vale a pena correr atrás.
Para escrever esse texto, a mulher recorreu a algumas cenouras, que você também pode amarrar à sua frente: Conhecimento é poder https://en.wikipedia.org/wiki/Scientia_potentia_est Quanto mais aprendo, menos sei: http://classics.mit.edu/Aristotle/metaphysics.mb.txt Com quantas pessoas nos relacionammos https://www.bbc.com/future/article/20191001-dunbars-number-why-we-can-only-maintain-150-relationships Más notícias vendem mais https://www.theguardian.com/media/greenslade/2007/sep/04/thegoodnewsaboutbadnewsi Ainda existem ilhas desertas https://www.mentalfloss.com/article/30692/10-uninhabited-islands-and-why-nobody-lives-them A ignorância é uma benção https://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Gray
Ótimo texto! Assertivo (de quem domina a escrita e, sobretudo, domina a experiência) e bastante útil para fazer refletir. Imagino que aquele que escreve aprecia quando suas palavras são ouvidas e sentidas - quando fazem sentido. Por isso venho dizer que é gratificante fazer essa leitura cheia de reflexões e divagações, com humor suave e refinado. Belo trabalho.
Se me fosse dada a escolha de ser feliz, mas ignorante eu não sei se aceitaria... Se tiver oportunidade, leia a matéria do link sobre "bad news sells". Ela fala sobre a noção de que as pessoas preferem más notícias =D
Excelente. Eu, às vezes, fico sem entrar em alguns meios de comunicação para não ter tanta informação, pois recebemos um bombardeio diário com tantas informações vindas de todos os lados. Mas ficar muito tempo sem se informar realmente faz parecer que estamos parados no tempo.