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Uma ponte entre dois tempos

Atualizado: 23 de mai. de 2022


Muitas pessoas me perguntam se Berenice sou eu. Eu tive bastante tempo para refletir sobre isso e a resposta mais simples é “não”; Berenice é uma personagem fictícia, assim como grande parte dos personagens criados exclusivamente para o livro. O que não me impede de ter com ela uma grande identificação, que encontra suas origens em diversas razões, como o amor pela aventura e a descoberta.

Mas ultimamente, um paralelo entre Berenice da Capadócia e eu, entre seu tempo e o meu tem se feito presente de forma marcante e inesperada: a descoberta de um vírus que até então estava ausente no bicho-homem.

Em minhas pesquisas sobre o período romano dos séculos 3 e 4, eu encontrei o interessantíssimo The fate of Rome: climate, disease and the end of an empire (2017 Princeton University Press), do historiador Kyle Harper. Nele, o pesquisador detalha como a força da natureza impôs sua vontade sobre Roma, essa que era, segundo o poeta Claudiano:

“Uma cidade maior que qualquer outra no mundo que o ar alcança, cuja amplitude nenhum olho pode medir, cuja beleza nenhuma imaginação pode conceber, cujo louvor nenhuma voz pode soar, que levanta uma cabeça de ouro entre as estrelas vizinhas e com suas sete colinas imita as sete regiões do céu, mãe das armas e da lei, que estende seu domínio por toda a terra e foi o berço mais antigo da justiça, esta é a cidade que, nascida de origens humildes, se estendeu para cada um dos pólos e de um pequeno lugar estendeu seu poder de modo até onde o sol toca.”

Esse discurso tão eloquente foi oferecido durante a visita do Imperador Honório a Roma, que não era mais a capital do Império, mas que guardava ainda esse orgulho de nobreza falida, que sempre acompanhou aqueles que um dia foram poderosos;

O público presente nas festividades estava vivendo um daqueles momentos em que todos acreditam que tudo está como deve ser e que nada pode mudar isso; um sentimento comum nos seres humanos, de que nada mude quando tudo vai bem. Animais selvagens, trazidos de todas as regiões dominadas pelo Império, foram colocados na arena, para oferecer ao público um massacre que, nas palavras de Kyle Harper, evidenciava que “os romanos haviam domado as forças da natureza selvagem”. Diante de tal espetáculo, provavelmente ninguém mais se lembrava das dificuldades do passado.

Mas a tal roda da fortuna não para de girar desde o início dos tempos e nós, viventes de hoje, privilegiados por ter um longo alcance do passado, sabemos que Roma também caiu.

O que torna o trecho seguinte incomodamente identificável:

Em escalas que os próprios romanos não poderiam ter entendido e mal imaginado — do microscópico ao global — a queda de seu império foi o triunfo da natureza sobre as ambições humanas. O destino de Roma foi representado por imperadores e bárbaros, senadores e generais, soldados e escravos. Mas foi igualmente decidido por bactérias e vírus, vulcões e ciclos solares. Somente nos últimos anos chegamos à posse das ferramentas científicas que nos permitem vislumbrar, de maneira fugaz, o grande drama da mudança ambiental em que os romanos eram atores inconscientes.

Sem detalhar demais todos esses fatores (porque eu sei que ficar em quarentena estudando história não está nos seus planos hahaha), um deles é para nós mais atual do que os outros: o assalto de novas doenças. Uma delas foi a que posteriormente cunhou-se como a praga de Cipriano. E é esse o evento que encurta a ponte entre o tempo de Berenice e o meu.

No ano de 249 d.C., pessoas começaram a adoecer, com sintomas terríveis (aparentemente bem piores do que os do COVID-19), e ninguém sabia de onde viera aquela nova doença. No seu auge, contava-se 5000 mortes por dia. Não há consenso entre historiadores sobre qual seria o vírus responsável pelo caos - entre os candidatos destacam-se a varíola, um tipo de ebola ou um vírus de gripe. Mas todos concordam que tratava-se de um vírus novo para o homem.

Não demorou para o pânico tomar conta da população. Ninguém correu atrás de papel higiênico, até porque isso não existia, mas eu consigo imaginar o medo do contato humano, as tentativas de isolamento confortável e o clima de “salve-se quem puder”. Isso porque relatos de documentos do período descrevem o pânico, o despreparo, a culpabilização (pagãos culpando o deus dos cristãos e vice-versa), a preocupação com a economia e a produtividade.

Berenice não viveu esse período, mas é sim um fruto dele. Foi talvez graças à essa nova Roma, que surgiu quando a crise passou, que ela pôde circular e chegar até onde foi.

A antiga ordem que punha no poder os filhos da aristocracia, agora via soldados tornados imperadores. Essa nova realidade mostrava que tudo era possível.

Foi talvez porque também deve ter ouvido relatos dos mais velhos, que contaram à ela como tudo era incerto e como todos tiveram que se readaptar durante a crise do novo vírus que ela desenvolveu em si a confiança de que se tudo é impermanente, então vale a pena tentar.

A recuperação econômica e demográfica de Roma foi lenta, mas ela rendeu ao império mais um século e meio de fôlego antes do seu final. Roma recuperou-se e novos padrões sociais surgiram. Cidades que antes eram poderosas, diminuíram e perderam seu prestígio para darem lugar a outros centros de importância.

Saber disso tudo me deixou mais tranquila, aliviou minha ansiedade.

Como eu dizia a uma amiga hoje de manhã, eu me pergunto sobre como será o futuro, mas de duas maneiras bem distintas: de um lado, eu tenho medo de ser contaminada pelo vírus, ou pior, que alguém que eu amo o seja. Mas esse é um medo que acompanha todo ser vivente todos os dias, então…

Por outro lado, eu estou muito otimista sobre os possíveis desdobramentos históricos dessa catástrofe, que — em tempo — só concerne nós, humanos. A prova disso é que a natureza à nossa volta continua impassível, em seu próprio ritmo. Pergunte para seu animal de estimação se ele está preocupado com COVID-19!

Estou convicta de que vamos mudar as coisas depois dessa crise. Esse vírus, sejam quais forem as razões de ele estar se espalhando da forma como está, nos obriga a questionar com mais seriedade sobre nosso modo de vida e qual futuro desejamos para nós. Agora é a nossa vez de escrever um novo capítulo, na história da humanidade.


 


2 Comments


A. Martins
A. Martins
Mar 20, 2020

Erros e tropeços são do individual como do coletivo uma parte fundamental. E é justamente o erro que nos marca mais profundamente. É uma pena que seja assim, mas assim é. O importante é aprender. Agora estamos no "olho do furacão" e tudo fica mais intenso, mas logo isso também passa. E se hoje estamos melhor do que o tempo de Berenice, os que lerem nossa história, no futuro, também estarão melhor que nós.

Força e paciência, minha querida Luana. Beijos, mas de pelo menos 1 metro de distância hahaha

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Luana Breda
Luana Breda
Mar 19, 2020

Como sempre nos possibilitando entrar no seu mundo e refletir sobre o que acontece. Não podemos ignorar a história, ela nos transformou em quem somos. Algo bom, pelas experiências e aprendizados, mas ao mesmo tempo ruim, pois nos faz achar que toda essa nossa experiência nos impedirá de viver os caos do passado e começamos a criar novos problemas e pior, achando cada vez mais que somos bons o suficiente para passar por toda e qualquer situação e minimizamos os acontecimentos. Titanic afundou, o mundo parou (agora posso usar a expressão "para o mundo que eu quero descer", mas é descer para minha essência...). Precisamos de união, colaboração, escuta, sabedoria. E Berenice, ah, isso ela tinha de sobra... Um grand…

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